Em 2006, após a expulsão do eficiente exército israelense do sul do Líbano pelos milicianos do Hezbollah, ficou claro para os interessados no assunto que a correia de transmissão ou, para empregar uma expressão mais clássica, o nó górdio dos interesses do Irã no Oriente Médio atendia pelo nome de Síria. Desatá-lo ou rompê-lo com uma lâmina afiada passou a ser a tarefa que se desenhava para os anos futuros no entender daqueles que veem o país persa como uma ameaça para a estabilidade da região.
I
nicialmente, os EUA e seus aliados optaram por desatar a aliança, tentando atrair o governo de Bashar al-Assad a partir de diversos contatos feitos por emissários do alto escalão diplomático norte-americano, inclusive com visitas a Damasco, e do convite feito pelo presidente francês Nicolas Sarkozy para que o líder sírio participasse em Paris da Cúpula da União pelo Mediterrâneo há pouco mais de três anos. É bom lembrar que a imprensa ocidental chegou a descrever Assad como um homem refinado, que havia estudado em Londres e que possuía todos os predicados para modernizar o seu país. Mesmo com todo o canto da sereia, por não confiarem em seus interlocutores ou por se manterem firmes em suas convicções e fiéis aos seus aliados iranianos, russos e até norte-coreanos, os sírios declinaram das tentativas de aproximação e acabaram por selar a segunda opção. O nó precisaria ser rompido.
As consequências de tais escolhas reproduzem um drama encenado em três atos. O quadro apresentado nos meses que antecederam a “intervenção humanitária” da OTAN na Líbia volta a ser pintado. Um regime com quatro décadas de longevidade, uma insurreição popular reprimida violentamente pelo governo, o surgimento de um conselho nacional oposicionista turbinado por exilados políticos e de uma milícia, presumivelmente apoiados financeira e militarmente por interesses muito além da alegada democratização, compõem o primeiro ato. Some-se a isso o clamor da mídia ocidental – que subitamente descobre mais um povo oprimido -, as vozes dos líderes de sempre exigindo resoluções da ONU que garantam a possibilidade de ações militares que salvem essas pessoas, mesmo à custa da destruição de suas casas e colateralmente de suas famílias, e estão dadas as condições para a derrubada de mais um regime indesejável.
O problema no caso sírio é que, como apregoava a célebre frase dos anos da Guerra Fria, se esqueceram de combinar com os russos. No último mês de novembro, quando o porta-aviões USS George Bush, inicialmente designado para retornar ao porto de Norfolk, foi deslocado para o Mediterrâneo oriental, descobriu-se que uma pequena flotilha russa capitaneada pelo também navio aeródromo Almirante Kuznetsov posicionava-se à frente do porto de Tartus, cedido pelos sírios aos seus aliados ainda nos tempos da extinta União Soviética. A imprensa israelense repercutiu a informação de que esses navios teriam desembarcado baterias do sistema antiaéreo S-300 acompanhadas por técnicos russos com o objetivo de instalar um cinturão ao redor do país que impeça ou dificulte a implementação de uma zona aérea de exclusão. Sempre o segundo ato do drama das “intervenções humanitárias”.
Se as informações quanto ao discreto fornecimento de equipamento militar sofisticado aos sírios não pode ser confirmada, algumas declarações de autoridades diplomáticas chamaram a atenção por seu tom explícito. Em entrevista à rede de televisão norte-americana NBC, em meados de novembro, a secretária de Estado Hillary Clinton afirmou de forma espantosamente premonitória: “Acho que poderia haver uma guerra civil com uma oposição muito centrada, bem armada e que com o tempo estará bem financiada e que está, se não dirigida, certamente influenciada por desertores do exército”. Em seguida, a embaixada dos EUA em Damasco publicou uma nota em seu site recomendando enfaticamente aos seus cidadãos que deixassem o país o mais rápido possível.
Russos e chineses, por seu turno, ficaram irritadíssimos com a livre interpretação da resolução 1973 da ONU, que permitiu a criação de uma zona de exclusão aérea na Líbia em março de 2011, transformando os aviões da OTAN em uma força aérea que apoiou decisivamente as ações das forças rebeldes na luta contra o ditador Muamar Khadafi. Além dos bombardeios aéreos, diversos relatos deram conta da ação de instrutores militares ocidentais atuando em terra, do fornecimento de armas e do suposto emprego de navios de guerra da coalizão no transporte dos grupos armados que fizeram o assalto final a Trípoli. O terceiro ato da tragédia. No caso Sírio, o embaixador russo nas Nações Unidas, Vitaly Churki, chegou a declarar recentemente que seu país não permitirá que uma linha vermelha seja cruzada na adoção de resoluções pelo Conselho de Segurança.
O fato é que um ataque à Síria, em nome de mais uma “ação humanitária”, se constituirá na provocação perfeita para forçar o Irã a dar um passo em falso, precipitando uma justificada resposta do Ocidente e de seus aliados. Na última semana, membros do autodenominado Exército da Síria Livre teriam capturado sete iranianos integrantes da Guarda Revolucionária, atuando no país em apoio à repressão armada conduzida pelo governo local. A se confirmar como autêntica, essa informação mostra o quanto o regime dos aiatolás estaria disposto a se envolver para preservar a ditadura de Al-Assad.
A essa altura dos acontecimentos, não é possível ter algum tipo de ilusão. O grande prêmio na louca corrida que se estabeleceu com a chamada Primavera Árabe é o Irã. Não obstante a carta de Barack Obama recentemente enviada ao governo iraniano, conclamando ao diálogo e ao fim das diferenças entre os dois países, os crescentes indícios das ações e movimentações militares que ocorrem no Golfo Pérsico e no Mediterrâneo apontam claramente em outra direção. A Síria é somente a bola da vez. Afinal, como tem sido repetido por alguns observadores atentos ao panorama geopolítico atual, a estrada que leva a Teerã passa por Damasco.
Por Márcio Sampaio de Castro de Carta Capital
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