MARCELO COELHO
DE SÃO PAULO
Em Folha.com.br
Executivos e empresários, a julgar pela literatura à venda nas livrarias de aeroporto, gostam de se imaginar como guerreiros medievais ou arqueiros japoneses. Aparentemente, há sempre lições administrativas a tirar da vida de Confúcio ou de Leonardo da Vinci. Sem dúvida, a arte ninja de liderar reuniões de orçamento ou a técnica de Átila no marketing varejista servem, se não para turbinar o desempenho de um diretor comercial, ao menos para inspirar seus devaneios de grandeza.
Alguns grandes personagens da história não parecem especialmente talhados para esse romantismo de portão de embarque. O nome de Nicolau Maquiavel (1469-1527), por exemplo, ainda está excessivamente associado ao pragmatismo, à impiedade e à esperteza para que pareça apropriado no esforço de nobilitar o cotidiano empresarial.
OBSTINAÇÃO E RIGOR
Nem tanto, diz o presidente do grupo Telefônica no Brasil, Antonio Carlos Valente, no prefácio a "O Príncipe Revisitado: Maquiavel e o Mundo Empresarial" [Actual Editora, 128 págs., R$ 34], de Aderbal Müller e Luis Antonik. "Inspirados por Maquiavel", diz ele, "os autores mostram que vencer no ambiente empresarial atual requer extrema dedicação, precisão e perseverança. É preciso ser firme, rápido e eficaz. Sem obstinação e rigor não há sucesso."
Reprodução |
Nicolau Maquiavel, em pintura de Sandi di Tito |
Dividido em capítulos curtos, cujos títulos formulam questões precisas ("Por que os Príncipes da Itália Perderam os seus Reinos", "De que Modo se Deve Avaliar a Força dos Principados" etc.), "O Príncipe" (1513; publicado em 1532) frequentemente desnorteia quem o lê. Situações semelhantes, conduzidas de modo idêntico, podem resultar em vitória ou em desastre. Exemplos e contraexemplos se sucedem sem levar a uma conclusão unívoca --a ponto de se discutir interminavelmente, até hoje, para que forma de governo e para que tipo de liderança política pendiam as preferências do autor.
Além disso, o autor de "O Príncipe" insiste no papel imponderável da "fortuna", o acaso ou a circunstância, no sucesso das ações humanas. A este fator se soma a "virtù", que nada tem a ver com a virtude moral de um indivíduo, mas com sua capacidade de domar, pela ousadia ou pela prudência, o ambiente que o cerca.
Sem se beneficiar de uma ou de outra, nenhum governante (ou empresário, se quisermos) sobrevive à sanha de seus rivais. Nem "virtù" nem "fortuna", de resto, podem ser adquiridas nas páginas de um livro. Se fosse assim, qualquer leitor aplicado poderia aspirar, com o tempo, a tornar-se um novo Lourenço, o Magnífico (referência constante em Maquiavel) ou um novo Abilio Diniz (presença forte no panteão de Müller e Antonik).
VOLTEIOS
Aderbal Müller é autor de numerosos livros na área de contabilidade e auditoria. Luiz Roberto Antonik foi diretor da Telefônica e hoje ocupa o cargo de diretor-geral da Abert (Associação Brasileira das Empresas de Rádio e Televisão). Num texto que imita com sucesso os volteios e formalidades do clássico italiano, a menção dos autores a empresários como Antônio Ermírio de Moraes, Abilio Diniz ou Samuel Klein não é tão deslocada quanto parece.
Não apenas Maquiavel, no seu empirismo argumentativo, preferia o exemplo concreto à regra geral, como também estava desesperadamente em busca de heróis, num momento em que Florença (para nada dizer de toda a Itália, ainda não unificada) amargava as consequências de um prolongado torvelinho político.
Não é que o Brasil vá de mal a pior no campo econômico. Mas, certamente, suas empresas mais representativas passam a uma fase em que se torna cada vez mais difícil enfrentar uma concorrência globalizada; nossos "principados" empresariais se veem diante de corporações bem mais abrangentes, cujos proprietários e administradores não conhecemos de perto.
Explica-se, dessa perspectiva, a ideia de Müller e Antonik de que toda grande empresa depende, em última análise, da figura pessoal do seu dono. Contrariando polemicamente as teses mais em voga na literatura especializada, que privilegiam os "métodos" e a "cultura organizacional", os autores insistem: "Uma grande empresa é um grande homem: acorda cedo, dorme tarde, trabalha muito, sabe tudo, está presente, é obsessivo". O raciocínio vale para a Ford nos tempos do seu fundador, assim como para a Microsoft de Bill Gates, argumentam.
Valerá para a Petrobras? Existirá um só "príncipe" à frente de cada gigante financeiro, farmacêutico ou automobilístico hoje em dia?
ACIDENTES DE PERCURSO
Entramos aqui em dois aspectos nos quais a tradução de um clássico político para o plano da vida empresarial moderna não se faz sem alguns acidentes de percurso. O príncipe maquiaveliano está em luta com potências estrangeiras e com seus rivais internos; presta contas à nobreza, à burguesia e ao populacho.
Seria de imaginar que, mantendo a simetria, o príncipe-empresário de Müller e Antonik tivesse de se equilibrar entre sindicatos de trabalhadores, fornecedores de matéria-prima, concorrentes diretos, governo central e o conjunto dos acionistas da empresa.
São estes últimos, entretanto, o foco quase exclusivo da atenção dos autores. Manter-se "no poder", em última análise, é manter-se no topo da organização -e o trato com os acionistas e assessores diretos parece ser o ponto em que Maquiavel mais tem a dizer para o leitor-empresário de hoje.
Sinal dos tempos ou restrição voluntária do foco por parte dos autores? Seja como for, não falta graça ao feito estilístico de Müller e Antonik; a realidade econômica de hoje, todavia, é provavelmente bem mais complexa do que cabe nas páginas deste livro, ou nos relatórios que recebem os acionistas de uma empresa.
CHURCHILL
"Fortuna" e "virtù", os dois componentes básicos com que se pesa o sucesso de um líder para Maquiavel, nunca faltaram à figura de Winston Churchill (1874-1965), que inspira outro livro recém-lançado para o público empresarial.
"Winston Churchill, CEO" [Campus, 280 págs., R$ 69,90], de Alan Axelrod, é o último produto de uma linha de montagem que tem, entre seus títulos, "Gandhi, CEO" e "Elizabeth 1ª, CEO". Como em qualquer livro de autoajuda, o problema do autor é o de esticar por mais de cem páginas um conjunto básico de regras ("defina o empreendimento", "elimine o medo do desconhecido" etc.) que simplesmente se explicam a si mesmas.
A vantagem é que Axelrod escolheu uma figura histórica realmente inspiradora. A vida de Churchill tem passagens de coragem extrema, muito antes do seu teste definitivo, liderando a Inglaterra na resistência isolada (depois da derrota da França e do pacto germano-soviético) contra a Alemanha de Hitler.
Aos 22 anos, Churchill recebeu seu batismo de fogo em Cuba, como correspondente de guerra; as balas dos insurgentes contra o domínio espanhol zuniram perto dele -e a sensação lhe trouxe euforia. Daí às fronteiras do domínio britânico sobre a Índia, ao Sudão e à África do Sul na guerra dos bôeres (em 1899), o jovem oficial consolidou sua carreira de combatente e escritor.
Dificilmente um empresário moderno haveria de considerar aconselhável investir sozinho, de Mauser em punho, contra rebeldes tribais. A pura sorte (ou a "fortuna") ajudou Churchill numa fuga cinematográfica de um campo de prisioneiros sul-africano.
Episódios desse tipo, além de discursos célebres e exemplos de negociação com grevistas, fornecem material interessante e admirável ao livro de Axelrod -ainda que ao preço de muitas repetições e de indisfarçada diminuição do espírito crítico.
O valor da história concreta, da "realità effettuale", como dizia Maquiavel, salva, entretanto, o livro de Axelrod das abstrações do gênero. No fundo, também em "O Príncipe" o problema era o mesmo: como se valer de princípios teóricos gerais quando são sempre concretos, específicos e indecidíveis os desafios de uma gestão? Em que medida cabem contra o Carrefour ou a Tim decisões tomadas contra o papado renascentista ou os tanques de Hitler?
O leitor, à espera do avião, aspira pelas altitudes.
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